Dito de outra forma é ANÓNIO PEDRO que fala:
"Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácilDe toda a poesia que por lá háA poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesiaQue fica depois da gente lá ter idoVer dançar a Deolinda"
Ou de ouvir tocar a cantar o Nelson de Covas, ou ver, por cima do ombro, dois olhos atravessados, diria eu. Pois apesar do surrealista asseverar que nem sequer foi escrito nas Argas nem em S. Lourenço, ele conhecia todos os caminhos para lá chegar. Com o Dr. Pedro os partilhou assim como as suas gentes que tanto iam fazer a festa em Cabanas como em Moledo
O melhor é ficar com o Poeta.
A Heroína, Deolinda da Castelhana é a mesma do ADEUS de Pedro Homem de Mello. É a mesma de Maria Manuela Couto Viana no seu ROMANCE DO RAPAZ DE VELUDO.
"PROTOPOEMA DA SERRA D’ARGA
Sonhei ou bem alguém me contou
Que um diaEm San Lourenço da MontariaUma rã pediu a Deus para ser grande como um boiA rã foiDeus é que rebentouE ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábulaFicou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveisFicou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragasFicou a respiração ligeira do alívio do peso de cimaFicou um admirável vazio azul para crescerem castanheirosE ficou a capela como um inútil côncavo de virgemPara dançar à roda o estrapassado e o viraNa volta do San João d’Arga
Não sei se é bem assim em San Lourenço da MontariaSei que isto é mesmo assim em San Lourenço da MontariaO resto não tem importânciaO resto é que tem importância em San Lourenço da MontariaO resto é a DeolindaDança os amores que não teveTem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carneSeca como a da penedia O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigasO resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claroComo não podia deixar de serAs raízes das árvores à procura de merda na terra ressequidaOs bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichosOu para comerem outros bichosOs tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintarE o milho nos intervalos
Todas estas informações são muito mais poema do que parecemPorque a poesia não está naquilo que se dizMas naquilo que fica depois de se dizerOra a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavrasNem com os montes nem com o lirismo fácilDe toda a poesia que por lá há
A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesiaQue fica depois da gente lá ter idoVer dançar a DeolindaDepois da gente lá ter caçado rãs no rioDepois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigosQue também foram à romaria
As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigosE da fermentaçãoNascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados
É assim na Serra d’ArgaQuando canta DeolindaE vem gente de longe só para a ouvir cantar
Nesses dias as larvas vêem-se menosPois o trabalho que têm é andar por debaixo das pelesA prepararem-se para voar
Quanto aos mendigos é diferenteA sua maneira de aparecerUns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidasDo ventre mendigo maternoOutros é quando chupam o seio sujo das mãesQue apanham aquela voz rouca e as feridasOutros então é em consequência das moscas e das chagasQue vão à mendicidade
Não mo contou a DeolindaQue só conta de amoresE só dança de coresE só fala de floresA Deolinda
Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigosQue para os criar bemLhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauisRegando-os com o esterco dos outros
Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a penaVão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimentoEles aprendemAo saberem tudoNasce de propósito um enxame de moscas para cada um
Todas as moscas que há no MinhoSe geraram nos mendigos ou para elesE é por isso que têm as patinhas frias e peganhosasQuando pousam em nósE é por isso que aquele zumbido de vai-vemDas moscas da Serra d’ArgaAinda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do PurgatórioEm San Lourenço da Montaria
Este poema não tem nada que ver com os outros poemasNem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundoNem eu quero dizer que sofri muito ou gozeiOu simplesmente achei uma maçadaOu sim mas não talvez quem deraViva Deus-Nosso-Senhor
Este poema é como as moscas e a DeolindaDe San Lourenço da MontariaE nem sequer lá foi escrito
Foi escrito conscienciosamente na minha secretáriaAntes de eu o passar à máquinaEtc. que não tenho tempo para mais explicações
É que eu estava a falar dos mendigos e das moscasE não disseContagiado pelo ar fino de San Lourenço da MontariaQue tudo é assim em todos os dias do anoMas aos sábados e nos dias de romariaOs mendigos e as moscas deles repartem-se melhorSão sempre maisE creio de propósitoSer na sexta-feira à noiteQue as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhosCom que se apresentam sempre no dia da caridade
Elas parem-nos pelo corpo todoPois a carneDe tão amolecida pelos vermesNão tem exigências especiaisE porque assim aconteceTodos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa moleQue nunca foi apertada
Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeirasEm San Lourenço da MontariaAlém deles há a bosta dos boisOs padresO ar que é lindoOs pássaros que comem as formigasAlgumas casas às vezesOs homens e as mulheres
Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósitoExactamente de propósitoExactamente para estar aliE é por isso que se tiram as fotografias
Por isso tudo ali é naturalmenteDuma grande crueldade naturalOs meninos apertam os olhos das trutasQue vêm da água do rioPara elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivasOs homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doamE percebam assim que lhes agradamOs animais comem-se uns aos outrosAs pessoas comem muito devagar os animais e o pãoE as árvores essasSorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar
Assim acaba este poema da Serra d’ArgaOnde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquiloParecia a queda dum regímenTudo muito assim mesmo lá em cimaE cá em baixo dois suados à machadada
Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosaMas no buraco do sítio da árvoreNa mata de pinheiralO azul do céu emoldurado ainda era mais bonitoEm San Lourenço da Montaria"
ANTÓNIO PEDRO. Moledo, Agosto de 1948
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