Senhora das Neves
“Nas fraldas da Serra d’Arga
É que fica minha aldeia
A Freguesia de Dem
Onde o meu amor passeia
Ó Senhor da Serra
Eu da Serra sou
Eu cantar não sei
Eu bailar não vou"
É em Dem nas fraldas da Serra D’Arga. Um dos meus sítios preferidos para lavar a alma. Vezes houve que voltei de lá com ela mais negra do que a levei. Pensamentos, imagens, pessoas, cruzam-se e fundem-se como se à paisagem pertencessem. Esta transcende o meramente pictórico para tomar outros significados.
Por detrás e acima sei que lá está a capela do S. João, das cerejas e do 28 de Agosto. Na frente dos meus olhos a foz do Minho com o monte de Santa Tegra de sentinela ao estuário. A Festa do Vinho e a subida ao monte no segundo domingo de Agosto, quinze dias antes da noite grande das Argas. Estive lá nesse ano. Encontrei o Tino Baz o gaiteiro d‘A Guarda. Fora em Santa Tegra o nosso primeiro encontro. O encontro do conhecimento. E de lá avistei a Serra de Arga e o seu Senhor. Imagem que me surge interessante. Dois lugares míticos tão próximos um do outro, à vista um do outro. Por isso agora aos meus ouvidos chegam os sons das gaitas galegas misturados com ecos de concertinas. De um lado se vê o outro numa simetria assimétrica como se estivéssemos a olhar para um espelho que reflecte uma imagem igual mas diferente da original. De lá, Montedor, Afife, Ancora, Moledo Cristelo Azevedo Venade Argela, Seixas, Lanhelas, Gondarém a ínsua, Caminha. O Tino sabe onde é a Serra d’Arga e aponta na direcção correcta.
Hoje estou do lado de cá. E o cá é o monte da Senhora das Neves. Azevedo, Venade, Caminha o Rio, Campos Ancos, A Guarda
O eixo dessa simetria é o Rio Minho, o rio do Nosso João Verde e logo me surge a visão da sua figura ali em Monção, naquele larguinho... (Só nunca entendi porque é que o colocaram de costas para a Galiza)
Ares da Raya é o que sinto. E do livro esta linda quadra.
“O temporal já foi tanto
O rio saiu do leito
Assim sucede ao meu pranto
Se a dor não cabe no peito”
A isto responderiam os das Argas
“Meu amor se tu soubesses
Da dor do meu coração
Eu antes queria morrer
Que sofrer esta paixão”
Mas a água corre pró rio e o rio corre pró mar. Corrente de sentido único. E olho o mar, aquele mar da Foz do Minho, que é afinal o de Afife, ou de Areosa em frente ao qual eu nasci. Nasci em frente às Bógas.
Da sabedoria ancestral:
– “O mar não tem cabelos!”
( sempre ouvi dizer para não me aventurar tanto a desafiá-lo)
uma outra vertente
“Nas ondas do teu cabelo
vou-me deitar a afogar
Para tu que saibas amor
Que há ondas sem ser no mar.”
No entanto sei outras coisas; que o mar tem pêlos. Pêlo vermelho, pêlo preto. Tanto a minha madrinha recolheu, – nas bogas, na Camboa Funda, na Camboa do Limo, em frente às quais eu nasci - secou para vender. O vermelho era o que dava mais dinheiro. Daqui resultou um trocadilho em cima da quadra anterior. Uma brincadeira.
Vou-me deitar a afogar
Nas ondas dos teus cabelos
Pra que saiba no amar
Que nem só no mar há pêlos
Enfim!!!
E a imaginação continuará no
ROMANCE DO SENHOR DA SERRA
O vento do fim de tarde
Em Setembro sopra leve
Vento da felicidade
Quando passa é tão breve
Vento da felicidade
pelos cabelos seguro
o vento não tem cabelos
a tormenta tem futuro
dizem que não tem cabelos
que não se podem amarrar
dizem - não pode esquecê-los -
amores ao pé desse mar
dos amores em certa praia
dos amores em certo monte
dessa história que os conte
espero que o livro não saia
que sejam sempre esquecidos
como se não os houvera
os lamentos e gemidos
não falam de Primavera
perdidos na Serra D’Arga
os amores da mocidade
não foram perdidos na era
foram perdidos na idade
Perdido na cerração
No meio do naboeiro
Ao chegar a S. João
Estava lá meu coração
Tinha chegado primeiro
Já tinha passado a serra
Pra lá da chã do Guindeiro
sete serras já passara
Para chegar ao terreiro
Do Adro de S. João
( Os meus passos de romeiro
todos os anos lá vão)
e nesta peregrinação
não encontro o aguadeiro
dos tempos que já lá vão
Água doce com limão
Para matar no caminho
A sede do caminheiro
(A sede que vem do chão)
"Abaixai-vos carvalheiras
com os ramos para o chão
deixem passar os romeiros
que vão para o S. João"
( E os ranchos iam passando
nos tempos que já lá vão)
E a brisa lá fora mansa
dentro de mim é nortada
Vendaval que tudo arrasa
Vou abrigar-me na casa
Que não me abriga de nada
Na casa das mil janelas
Quantas as recordações
Galáxias, constelações
Muitas mais que as estrelas
Muitas mais seriam elas
Mais que os buracos nas telhas
Mas já cai a tarde fria
tirita a alma na dor
donde virá o calor
que certa dor alivia
gaita grileira vizinha
do Minho, rio sagrado,
vai cantando ao meu lado
vai alegrando a tardinha
Galiza minha Galiza
Olho p’ra ti nesta hora
Sinto a videira que chora
Que não mata mas avisa
Galiza minha Galiza
Dos prantos assolagados
Dos carreiros ensombrados
Leva a sombra dos meus olhos
Meus olhos esbagaçados
Os meus olhos não os quero
Sem que vejam meu desejo
Sem que tenham o ensejo
De ver na vida o sincero.
Não sou alto nem austero
Nesta minha pretensão
É muito pobre o que quero
Por isso peço perdão
De não ter espaço, o que guardo,
Dentro do meu coração
lá dentro não caberá
A minha humilde alegria
Sentida naquele dia
Em que a alegria foi vã
E logo pela Manhã
Subi ao Senhor da Serra
O local onde se encerra
O eco dum alalá
Pelos altos se ouvirá
Um grito de concertina
A resposta que dará
Este lado rio acima
Esclarecimentos
A humilde alegria é a mesma de Cuesta Abajo
“Sabia,
que en el mundo no cabia
Toda la humilde alegria
De mi pobre coraçón”
A casa das mil janelas são dos versos AFIFE de Pedro Homem de Mello
“Ó Casa das mil janelas
Das mil noites estreladas
Berço de longas estradas
Poeta, fiei-me nelas”
E o próprio Dr. Pedro conheceria aquela antiga lenga-lenga
Casa de meus pais
Casa das trinta janelas
Muitas mais seriam elas
Na minha, era o sobrado da Casa Nova. Por sinal a mais velhinha por o corpo central ter sido beneficiado muitos anos depois da construção daquela. A tarimba de ferro e as mantas de farrapo acrescentavam àquela sensação de conforto da primeira protecção que o telhado sem tecto dava, mesmo com o som da chuva a bater directamente nas telhas. Sensação de conforto uterino. Com céu limpo as trinta janelas deixavam passar a claridade das noites estreladas. E o sonho nasceu ali.
As carvalheiras ainda lá estão e tantas há. Estorranha, Trazancora, Espantar, Pedrulhos, Sant'óginha...
Abriam alas às cantigas.
A gaita grileira é aquela afinada em Ré. Aquela que retine acima das outras.
Nota
Para quem ache que tudo isto não passa de lirismo de restivo tem uma alternativa, deve ler o
PROTOPOEMA DA SERRA D’ARGA de António Pedro. Vale bem mais a pena.
Este cantinho é dedicado à Senhora Deolinda da Castelhana do Lugar de Espantar em S. Lourenço da Montaria e à Senhora Laurinda do Cerquido Últimas vozes primitivas da Serra D’Arga que eu, por ter nascido ainda a tempo, tive a felicidade de ouvir.
Ao Tino Baz da Guarda. Galego da margem direita do Rio Minho. Gaiteiro, tocador de viola, sanfoneiro, cantador. Quem já o ouviu tocar e cantar ouviu a Galiza. Quem o ouviu falar ouviu as entranhas dos montes da nossa terra nai de onde brotam as águas que fazem verdes os nossos campos. Quem o viu, viu a Arte!
As fotografias em Santa Tecla são o meu orgulho. Foram tiradas pelo Benjamim Enes Pereira, do Lugar de Montedor, de quem um dia alguém contará a história por muito que pese o seu desprendimento.
De João Verde são as armas remotas deste portão que já se abre. Então a viola das chulas cruzava-se com a gaita das moinheiras das foliadas, das caralladas. Acrescento-lhe agora a concertina, a minha arma.