quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O ANTI PEDAGÓGICO

Nascido e criado no Lugar de Além do Rio, Areosa, mesmo ao lado de Viana, a vila sempre ficava demasiado longe. Para lá chegar passava-se a Ponte Nova, a Igreja, depois o Mirante e antes de alcançar o Amazonas era necessário atravessar a infindável Povoença. Depois até S. Roque eram mais uns paços. Assim ir a Viana era em dias de feira e pelas festas da Sra. D'Agonia. E lá para os lados do Covelo se vivia, quase em Troviscoso, longe da civilização. Aos seis anos, Outubro de 1955,  fui para a escola primária, a Fontes Pereira de Melo aberta desde mil oitocentos e troca o passo graças à ajuda dos da Casa do Rei. Descalço, com os outros, vencidas as Fontaínhas, lá enfrentava a régua do Mário Viana que me ensinou a ler, a escrever, e a contar. Na segunda classe apanhei (salvo erro) a Dona Eulália  na Casa do Fevereiro, hoje ainda em ruínas, em que, já nesse tempo, andava a tal coisa má que tem impedido que se faça do pardieiro algo útil. Na terceira classe tocou-nos a Maria Manuela Pinto, na escola da Estrada, hoje sede do GEA. Fazia uns lindos desenhos e morava ali para o lados dos SóGranitos.  
Ora na quarta classe aconteceu que um aluno vindo da Escola da Avenida formou conosco o ano em que a professora era a  Fernanda do Céu Afonso. Chamava-se Manuel Caldeira Pedra. Filho do Sargento Pedra da GNR tinha sido transferido dado o seu pai ter uma nova residência por detrás do Amazonas pois até alí tinha pertencido a Viana. Mas o Necas Pedra não esteve conosco durante muito tempo. Já a meio do ano lectivo o pai conseguiu que voltasse à Escola da Avenida. Mas o tempo que esteve conosco foi o suficiente para que se tivesse alterado completamente a visão que eu tinha do mundo.
À nossa beira o Pedra era de outro planeta. Vinha de Viana. Desempoeirado, aberto, comunicativo, sabedor, não havia nada que não fosse do seu conhecimento. Ao seu lado  éramos uns bichos do mato. Eu sentia-me um labrego vindo de um sítio longe da civilização. E o Necas cedo ganhou o lugar do melhor da classe, logo ali na primeira carteira à esquerda da entrada da sala do norte da escola. Só depois estava eu o Zeca do Gaião, os Minas, o Zé Rego, dos de que me recordo.
E de facto o Pedra tudo sabia. Nos ditados não dava erros. Caligrafia impecável nas cópias. Acertava todas as contas. História nem se fala. Geografia muito menos!
Tudo? Bem, tudo não! Um certo dia a classe inteira errou numa pergunta. Pedra incluído para surpresa de todos e principalmente da professora. Não me lembro já qual foi a pergunta. Façamos de conta que tinha sido sobre quem tinha descoberto  o Brasil. Furiosa a professora, muito màzinha diga-se e a quem vi partir uma régua nas mãos do João Minas, mandou como trabalho de casa o castigo de escrever cinquenta vezes...
- Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil!
Ora toda a classe assim fez e no dia seguinte, tementes à professora e muito mais à régua,  um a um, mostrámos os cadernos com as cinquenta linhas devida e convenientemente preenchidas.
Todos menos um, o Necas Pedra! E ainda não havia livros do Astérix. Só o Condor e o Mundo de Aventuras e que nem sequer chegavam à aldeia.
Ora o Pedra apresentou o seu caderno em que no cabeçalho de todas as necessárias folhas tinha de facto escrita a frase em causa. Depois era aspas aspas, aspas aspas, aspas aspas, até ao fim de cada folha.
Bem, se a professora era brava, no instante transformou-se no  inferno. Num furioso avermelhado passou ao Necas um raspanete maior do que Santa Luzia.
Eu que estava ali ao lado ouvi claramente a calma justificação do Pedra.
- O meu irmão, que também é professor, disse que este castigo da repetição é antipedagógico!
Imaginem me, com nove anos, a ouvir tal palavrão!
A professora  fez uma pausa. Ai o seu irmão é professor? Então que venha falar comigo!
Dali a uns dias apareceu um tipo que eu nunca tinha visto por Areosa. Era o Irmão do Necas. Lembro que, através da porta, o vi falar com a professora debaixo do alpendre a uma distância suficiente para não conseguir entender do que falavam. Nunca o soube, mas sabem o que aconteceu na sequência?
O Mário Caldeira Pedra casou com a Fernanda do Céu Afonso. Eu fiquei a conhecer o irmão do Pedra que tendo sido nos anos subsequentes professor naquela mesma escola, organizou, em Areosa,  um curso, à noite, para adultos. Muitos Areosenses têm a quarta classe graças ao Mário Pedra.
Desde então não mais esqueci do que era antipedagógico.
Desde então fiquei a saber quem era o Mário Caldeira Pedra.
E, dessa altura, dos três ou quatro meses de convívio com o Necas Pedra, ficou o sentido mais profundo daquilo que a palavra amizade significa.

Sem comentários:

Enviar um comentário