terça-feira, 26 de maio de 2020

Pelas cortas do argaço

Encontrei, publicada pela Adelaide Graça, esta imagem

















que me mereceu o seguinte comentário:

"Golfos na praia! Depois das cortas!"

A Adelaide perguntou:

"Cortas?!!!

Ao que lhe respondi:

"As cortas do argaço! As mulheres metiam-se ao mar na maré baixa. As saias enchiam como se fossem câmaras de ar. Cortavam o argaço à foucinha para que se libertasse e desse à praia. No fim havia bailarico!"

Num sou do tempo dos bailaricos. Desses me contou a minha nai que no seu tempo eram animados pelo Toca Tone. Mas não me abandonaram as imagens das mulheres metidas na ondas com as saias enfoladas alí entre a Cambôa Funda e os penedos das Bógas. A minha tia e madrinha Maria era uma delas!

Já ouvi algures que isso, que esta evocação não passava de um romanticismo qualquer sem correspondência com a realidade.

Não tenho nenhuma fotografia desse trabalho que tantas vezes facilitava a apanha de um polvo ou de uma aranhola!

No entanto existiu em Carreço um tal António Silva que nos deixou preciosos testemunhos desse tempo. E esta imagem é a que mais se aproxima do que relatei. Aqui as mulheres, metidas na água, não cortavam o argaço. Já o recolhiam!

Quem não deixou passar essas andanças e danças foi Pedro Homem de Mello no labiríntico degredo a que esta nossa terra nos condena!

DEGREDO

De Pedro Homem de Mello ( de quem mais seria?)

Naquele branco navio
Que ao longe parece fumo,
Que as ondas do mar salgado
Parecem deixar sem rumo,
Sou eu quem vai embarcado,
Província! minha província
Como agora me lembrais!
Cheiro da terra molhada
Resina dos pinheirais!
Província! Minha província!
Arga! Bonança! Peneda!
Formariz e Portuzelo!
Abelheira e Pomarchão!
Ai Ponte de Mantelais!
Aldeia de Verdoejo!
Ai S. Miguel de Frontoura!
Friestas! Paçô! Venade!
Vilar de Moiros! Carreço!
Santa Cristina de Afife!
E lá no fundo Cabanas...
Rio Minho! Rio Coura!
Rio de Ponte do Lima!
Rio de Ponte da Barca!
(O mar começa em Vi-Ana...)
Ai! a Torre de Quintela
Mai-la da Glória! Bretiandos!
Ai o paço do Cardido!
Nossa Senhora de Aurora!
Alminhas de Além da Ponte!
Ai Cruzeiro da Matança!
Ai! as árvores da Gelfa!
Bruxarias e ladrões...
Certa mão branca nos muros...
Vozes na casa deserta...
Ai! o vento! A noite! o medo!
E a madrugada! E os poentes?
E as rusgas? E as romarias?
Mocidade! Mocidade!
Capelinha de S. Bento!
Carreirinhos ao luar...
(Por quantos deles não vão
Os homens à perdição
Que logo à morte vai dar?)
Ai! leiras de milho alto!
Videiras! Ai videirinhas!
Canções na pisa do vinho!
Toadilhas de aboiar!
Esfolhadas! Esfolhadas!
Ai! bailaricos na praia
Pelas cortas do argaço!

Tiranas, Viras e gotas!
Verde Gaio! Verde Gaio!
Minha viola bréjeira!
Minha harmónica tombada!
Como agora me lembrais!
E aquele pinheiro manso
Ao dar a volta da estrada?
E aqueles beijos contados
Nos dedos daquela mão?
E as ondas do mar baloiçam
Já não sei que embarcação...
E aquele branco navio
Que ao longe parece fumo,
Que as ondas do mar salgado
Parecem deixar sem rumo,
(Aquele branco navio!)
É vida humana. Pecado
Maior do que o mar salgado.
Que o mar, sem ele, é vazio


E não só o lirismo de Pedro homem de Mello

Vejamos o "surrealismo" de Ruben Andersen Leitão que nasceu há precisamente cem anos. 

Ou seja no dia de hoje, 26 de Maio de 1920


E não será por acaso que a Casa de Ruben A, em Montedor, foi por ele baptizada de SARGAÇO a que dedicou diversas PÁGINAS.

Em PÁGINAS I escrevia 

As cortas do sargaço.

A baixa seca é ás dez horas 

Mas o nascente do sol quando brilhava os seus primeiros raios  já encontrava os entrudos  prontos  para a misteriosa faina. 


Uns iam nas maceiras e quantas mais maceiradas melhor. Ir e vir sem perder tempo, encher até não poder mais e dar sangue aos joelhos nas raspagens do sargaço. Carregar a terra com adubo e no movimento, debruçadas nas bordas das típicas embarcações, raparigas lançando a foicinha tomavam o sargaço fácil preza de gestos ritmados pela ondulação. Outras, dominavam as pequenas enseadas, passeantes aqui e além. Outras espetavam-se dentro do mar arrancando-lhe baixamente novos feixes de cor. Depois todas elas carrejavam pelas quelhas arrastando o pesado sargaço com a ajuda da corda e do redenho...


Bem, tudo isto é muito bonito. Mas eu já li escrever que o povo a que PHM se referia nunca terá existido para além da imaginação da sua libidinosa tola!


tone do moleiro novo

4 comentários:

  1. Bonito de se ler. Grata por esta bela e explicativa dedicatória ao argaço e às mulheres que, sensualmente(sem o saberem) ofereciam, através do seu trabalho, uma panorâmica vestida de romance. Abraçooo

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  2. Essa, da sensualidade distraída, num é bem assim. Dependia da idade das sargaceiras...

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  3. António Barros Lopes
    Obrigado por esta bela, mas arrepiante, lembrança.
    Na praia de Afife, ainda cheguei a ir ao sargaço com a minha avó. Tinha nove anos e entretinha-me com uma vareta afiada a apanhar uns pequenos peixes cabrões entalados nas pedras.
    Coitada da minha avó, depois de toda a canseira na apanha contra as ondas e de estender na areia pra secar, ainda tinha que carregar comigo dentro do redenho a atravessar a veiga de regresso a casa.
    Tempos do caraças.
    Abraço e saúde da boa
    Valdemar Silva

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  4. Pois é Senhor Valdemar Silva. Mas agora há quem ache que a evocação desses tempos é tudo poesia. Num é! - É cairmos em nós próprios e dar-nos conta dos trabalhos tremendos que os nossos progenitores tiveram para nos criar ao mesmo tempo que cuidavam a terra que herdamos. Mas há quem não sinta isso!

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