quinta-feira, 20 de junho de 2013

O QUE A TERRA COME

Disse alguém!

Alguém disse que, em Portugal, tinham sido escritos três livros:

- OS LUSÍADAS

- A MENSAGEM

e

- O CANTO E AS ARMAS

Eu acrescentaria um outro

POVO QUE LAVAS NO RIO

Neste, publicado em 1969, Pedro Homem de Mello insere um texto que intitulou O QUE A TERRA COME, (pg.105) que vai aqui transcrito:

O QUE A TERRA COME

     Havia, em Afife, dantes, um lenço ( de «bobinette» lhe chamavam) da família Alves, do lugar de Agrichouso, amàvelmente cedido pela sobrinha da sua proprietária que, de cada vez que no-lo confiava, prevenia;
     - Aproveitar enquanto é tempo! pois este lenço terá a mesma sorte dos outros que desapareceram...
  Vinha em seguida a explicação:
     - Cada qual das monhas tias ( que ream três e de que, actualmente, só resta uma) deixou escrito que desejava, quando morresse, levar «o trajo de luxo» para a cova...
     Fosse como fosse, tristezas não pagam dívidas, e ante o esplendor desse véu de noiva, com raminhos de neve bordados, poisando à laia de borboletas, aquela prevenção tinha, para nós, sabor de inverosimilhança.
     E todos os anos, por alturas da Festa da Senhora d'Agonia, lá voltávamos a subir, de Cabanas a Agrichouso, em demanda do tesoiro que nunca recusaram àquela que o nosso coração elegera.
     Assim, a juventude ía passando, florindo, novamente, de Agosto em Agosto, até que os arraiais minhotos perderem de moda sem que déssemos conta de que o cemitério de Afife, entretanto, escondera a moldura que alegrara tanto os nossos olhos...
     Mais tarde, tive o ensejo de verificar que esse costume a quase todas as regiões do Norte de Portugal se estendia. Ainda, o ano passado, em Guimarães, um lavrador me disse que os dois melhores lençóis de linho que possuía estavam postos de parte para servirem de mortalha, um a ele e o outro à companheira de toda a sua vida. E rematou; - Deus permita que respeitem as minhas vontades derradeiras!

     Logo ao lado, alguém observou que o destino de tais lençóis era, afinal, o de todos os trajos da aldeia...

     Depois, no distrito do Porto, as informações sobre enterros, atingiram o auge da tragédia, visto que não se tratava apenas de bragais ou meros guarda-roupas, mas, também, de jóias. E soubemos, nesse momento,  que para a sepultura iam a par das saias com barra de veludo, e de aventais de vidrilhos, todo o oiro que formava o dote das morgadas da época...

     Compreendí, então, o sentido daquela quadra:

                                  Eu sou devedor à terra 
A terra me está devendo
A terra me paga em vida
           Eu pago à terra, em morrendo  

     Mas o que talvez o leitor não saiba é que o mesmo sentimento, ( que poderíamos alcunhar de «egípcio», recordando as múmias das Pirâmides!) se prende., ainda, aos instrumentos de música, desde a singela concertina à rabeca ornamentada com incrustações de marfim ou madrepérola.

         Quando oiço uma concertina
Reparo e tiro o chapéu
Não se me dava morrer
     Se houvesse disto no céu!

     Tais versos que me foram cantados, há dias, pelo Nelson de Covas, juram a que ponto a música é apreciada pelo povo. E no Minho, só a título de excepção poderá ser ouvida qualquer melodia sem que os bailadores a adaptem à dança. Hoje em dia, o harmónio ocupa o lugar, outrora concedido à viola que levava as nossas avós a dizer:

                                     Ó tocador da viola
        Repenica-me esses dedos!
    Se te partirem as cordas
         Aqui tens os meus cabelos!

     E ninguém venha afirmar que a viola, pelo menos a viola brejeira, teve jamais outra finalidade que não fosse a de acompanhar cantadores!
      
        Mas voltemos ao Nelson.

        Procurámos, de uma vez, traçar-lhe o perfil nas palavras seguintes:

   « De harmónio à banda, a melena sobre a testa, misto de gladiador  e de poeta, fazendo sòzinho a festa e deitando os foguetes, cantando e bailando, onde quer que haja um adro ou uma eira, e pronto  sempre, a embandeirar em arco, a serra, a beira-rio ou a praia, com a chama da sua presença, ele encarna  «o rapaz do cravo na boca» da lenda portuguesa que a todos e a ninguém dá a flor que leva , ou, melhor, que a desfolha, à mercê da brisa, deixando, ao passar, um rasto de aroma silvestre...»

     Pois bem!
     O nosso amigo Nelson ( não encarnasse ele a tradição no mais puro sentido da palavra!) já ditou o seu testamento, no dia em que pediu à mãe:

     « Se eu morrer antes de você, ponha-me a concertina no caixão e não me enterre sem ela!»

Termina aqui o texto de Pedro Homem de Mello

Ora acontece que o Nelson, por uma ordem natural, sobreviveu à mãe:

Pela mesma ordem, morreu. Na passada segunda feira.

Na terça fui ao seu enterro. Estava depositado nos Aflitos. E ví as tábuas do caixão fecharem-se em cima do corpo do Nelson com a sua concertina lá dentro. A mesma concertina onde eu aprendera a tocar. Tinha sido posta não pela mãe, mas pelos filhos a quem tinha feito o mesmo pedido.

Chorei lágrimas, d'aquelas que  me correm agora.
Sem sogas. O computador não liga a essas coisas!

LOPESDAREOSA

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